LA MANO DE DIOS
Em 1986, nas quartas-de-final da Copa do Mundo, Diego Armando Maradona marcou dois dos gols mais comentados da história do futebol, levando a Argentina à vitória contra a Inglaterra por 2 a 1. Em um deles, driblou meio time inglês e só parou na rede. O outro também foi bonito, porém havia algo de errado, que o árbitro não percebeu. Algo a ver com a regra 12 do futebol, que diz quais são as infrações do jogo. Entre uma série de atos violentos, que vão de empurrar a cuspir no adversário, está lá: não é permitido tocar a bola com as mãos de propósito. Pois é, o gol de Maradona foi de mão. “La mano de Dios”, como ele chamou mais tarde.

Mas porque usar as mãos é irregular? Na década de 1850 na Inglaterra, a universidade dos ricos de Eton e a universidade das classes mais baixas de Rúgby eram rivais. Em Rúgby, era praticado um jogo que mais tarde levou o nome da escola, onde se pode usar as mãos livremente, segurando e correndo com a bola e derrubando o adversário em posse desta (
o rúgby, na foto, volta às olimpíadas, após cem anos ausente, no Rio de Janeiro).
Eton quis se diferenciar e apelou para o que naquela época, quando o trabalho manual nas indústrias era o emprego-padrão, consistia em um grande exercício de autocontrole e, por extensão, refinamento: abster-se de usar as mãos. Naquela época, havia regras diferentes em outras escolas, como Charterhouse, Harrow, Shrewsbury, Westminster e Winchester, mas a maioria acabou optando pelas regras de Eton. E o resto é história – do futebol.

Corta para o final do século 19, Estados Unidos. Em duas sedes da Associação Cristã de Moços no nordeste do país, surgiram dois esportes que todos nós já praticamos nas aulas de educação física:
vôlei e basquete, na foto. Outro esporte que costumávamos jogar na escola aparece na Alemanha, em 1919: o handebol. Todos trazem novas maneiras de se manipular um objeto. No caso, a bola – mas poderia ser qualquer ferramenta que o ser humano desde sempre utilizou com as mãos para obter vantagem, da lança do caçador ao IPad e IPhone.
Pense, porém, em todos esses esportes coletivos com bola, e qualquer outro que tenha surgido depois, e você poderá responder à pergunta: se joga com mãos, ou com pés e outras partes do corpo? Alguns até usam os dois, como o vôlei. Mas um deles prevalece – no caso as mãos, já que raramente acontece alguma defesa com os pés na seara do Bernardinho. Não existe uma modalidade esportiva que seja completa, que envolva competição, trabalho de equipe, disputa por uma bola e uso igual de mãos e pés para jogá-la?
Em 10 de setembro de 2010, o professor de educação física Cristiano Hoppe Navarro chamou 25 amigos para um jogo no estádio da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Estava acostumado a convidá-los para jogos de futebol, e não disse do que se tratava, então todos devem ter deduzido que jogariam com a bola nos pés no gramado impecável. Reuniu todos antes da partida ao lado do gol e fez três perguntas. Como surgiu o futebol? Na Inglaterra, acertou alguém, e ouviu algumas informações extras. Quem sabe qual é a regra 12 do futebol? Você já sabe dizer, mas naquele dia ninguém sabia especificamente pelo número, então lhes foi explicado. Finalmente, qual é o resultado de misturar futebol com vôlei? Pausa para dizer que há duas respostas. Se você respondeu futevôlei, esporte criado no Brasil em 1950, você está certo, assim como o atleta que deu a mesma resposta naquela noite de temperatura amena. Quadra de vôlei, jogadas de futebol, ok. Mas bastou o grupo dar uma olhada ao lado e à frente e atinar para o óbvio: aquela não era uma quadra de vôlei. Era um campo, onde se joga futebol. Então o quê?



Era preciso inverter a equação e imaginar o insondável. Campo de futebol, jogadas de vôlei. Mas não foi preciso descartar as jogadas de futebol. Ambos os tipos de jogadas poderiam estar presentes. E assim foi realizado o primeiro jogo da história do futmanobol, uma expressão bilíngue para um novo esporte. “Fut” e “bol” aportuguesados do inglês, e “mano” do idioma de Maradona. Uma paródia do Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, o "Homem de Futmanobol", na foto, deixa claro a característica intuitiva, “onde a bola vier, vai ter um jeito de jogar”: seja chutando, ou de manchete, toque, cortada e bloqueio, com joelhos, peito ou cabeça, ou usando tapas, socos e golpes com o antebraço.
Ponderou-se: o que as mãos têm de mais eficaz que os pés? E é justamente o polegar opositor, em ângulo de 90 graus com os dedos da mão, que ajudou a espécie humana a triunfar sobre as demais. Com ele, conseguimos fabricar coisas. Com ele, podemos segurar e carregar coisas (como bolas), o que os pés não podem fazer.
Assim, surge a primeira regra do jogo com as mãos do futmanobol, nas fotos: não é permitido segurar ou carregar a bola com as mãos. A segunda é que o chão é o território dos pés: para usar mãos, a bola deve estar no ar. Por fim, uma regra que estimula o jogo coletivo e o uso ainda de outras partes do corpo, para que o esporte seja o mais completo possível: no máximo três toques seguidos no ar com mãos e braços, feitos pelo mesmo jogador sem alternar com outra parte do corpo, são permitidos.



Um exercício de imaginação em uma narração de uma jogada de futmanobol mesclando atletas brasileiros de diferentes esportes. “Tiago Splitter dá o toco e recupera a bola para o Brasil. Dribla girando com as mãos e joga na direita pra Daniel Alves. Ele finta. Parte em direção à linha de fundo com a bola no chão, faz o cruzamento com o pé esquerdo. A bola viaja. Cai nas mãos de Bruninho. Faz o levantamento de costas na região da meia-lua. Fred vai tentar o chute de bate-pronto, o adversário ameaça o bloqueio. Corta com a mão para a direita e ganha espaço, faz o passe de trivela no alto na diagonal entre a trave e o gol. A bola vai sair, David Luiz chega antes, é cortada, é rede, é gol!!”




Democrático: você pode escolher mãos ou pés. Acrobático: há muitas jogadas aéreas, incluindo quando um jogador levanta o outro para que vá mais alto. Ação ininterrupta: a bola pode ser jogada de volta pro jogo em um toque, se sair por cima e não encostar no chão fora de campo. Altius, citius, fortius. Mescla de futebol, handebol e vôlei, e ainda com técnicas de basquete, futevôlei, futsal, punhobol, beach soccer, peteca e rúgby. O futmanobol não é corrida, luta ou dança, é tudo isso e uma bola mais esférica que o nosso achatado planeta, com o peso adequado para sofrer golpes com pés, mãos e a imaginação.
Criado em 1863, o futebol completou um século e meio de existência em 26 de outubro de 2013. Um mês antes, o futmanobol completou três anos. Nesse período inicial, foi testado e desenvolvido na capital do Brasil, onde seu criador mora e dá aulas de educação física. Foram realizados quatro campeonatos, turmas de treinamento em duas universidades, jogos em diferentes superfícies e números de jogadores, e até mesmo um gol em forma de elipse. Em junho de 2014, ocorre a Copa do Mundo de Futmanobol, realizada durante a Copa de Futebol e mostrando que há um jogo mais completo e divertido que o futebol. O futmanobol (ou “handsoccer”) hoje está pronto para ganhar o mundo. Não serão necessários 150 anos.
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